domingo, 13 de julho de 2008

(Des)encontro

Coloco a chave na fechadura da porta do seu apartamento e ouço o som inconfundível do ato. Abro. Dentro, a meia-luz é interrompida pela minha sombra que se reflete na entrada encarpetada pela lâmpada forte que vem do corredor. Você não olha para trás. Está imóvel, recostado na janela de cortinas brancas transparentes. Fuma um cigarro.Sua calça jeans surrada lhe veste perfeitamente. Seu torso está nu e os seus pés descalços.Eu lhe olho por uns segundos que parecem demorar uma eternidade. Minha testa está franzida e, na boca, tenho um chiclete já sem gosto que insisto em não cuspir.Jogo a mochila mole, vazia, na primeira poltrona que encontro em sua sala e as chaves em cima da mesa de vidro. Você olha para o lado e vejo seu perfil, que contrasta com a iluminação do lado de fora do prédio. Lá fora, de onde acabei de vir, choveu. As pessoas pisavam em poças que, momentos atrás, refletiam luzes de Natal em árvores mortas e carros vivos cheio de pessoas semi-vivendo dentro deles. Antes de entrar no prédio, relembro do cheiro de chuva que me fez respirar fundo, umidificando minhas narinas e entrei no terceiro elevador. Justo aquele que não tinha mais nenhum alguém dentro. Sinto como uma contagem regressiva os andares indo do térreo até o décimo segundo andar. Doze longos segundos até você. É mais do que suficiente.Meu cabelos molhados caem no rosto em cachos assimétricos molhando seu carpete. Não enxergo as gotas formarem círculos no chão, mas sei que caem junto com lágrimas. Aqui de dentro a sensação é outra, completamente oposta da rua iluminada. A visão do andar alto me faz olhar baixo.As pessoas pequenas, buzinando e esperando por um atendimento de socorro da ambulância que percorre a noite quente. Suas sirenes ecoam em meus ouvidos enquanto fecho a porta e a luz do corredor vai formando um feixe até sumir por completo. Não tranco sua porta. Se precisar sair correndo dali em disparate, sinto que não poderei encontrar a chave a tempo; ela que está ali, ao lado do vaso de flores que você ia me enviar hoje pela manhã. O cartão ainda está preso entre os dezoito bogarins e me lembro do significado de tais flores. Bogarins significam amor puro e vivo que existe dentro de uma pessoa. Dou um sorriso tímido e tristonho. Passo as mãos pelos cabelos, digo um "hey" e você repete a mesma palavra de três letras sem olhar para trás.Vou ao banheiro, seco um pouco os cabelos e tiro a camisa. Quando volto para a sala, você já terminou seu cigarro. Aposto minhas calças ainda secas que você jogou a bituca na varanda do apartamento do lado, como sempre fez.Está virado de costas para a janela, mas ainda encostado no parapeito. Parece abatido e tem os olhos vermelhos. Com os braços cruzados e olhando para mim, me pergunta se estou bem, enquanto respondo que sim com as mãos nos bolsos.O silêncio não incomoda, porém parece que não sabemos mais nos comunicar pelo olhar ou pelo toque. Ando até o parapeito e me apóio na janela. Você encosta junto comigo enquanto eu coloco um cigarro na boca e me pede um. Tiro um do maço e entrego na sua mão, mas você olha para mim sorrindo e tira o que está na minha boca. Eu sorrio de volta e cutuco levemente seu abdome com o cotovelo. Encosta seu braço direito em mim e eu suspiro. Seus olhos mirando as vidas que acontecem lá embaixo na rua já não estão mais vermelhos. Meu rosto seco já não escorre lágrimas. Começamos a adivinhar vidas e personagens lá de cima. A mulher que passeava com o cachorro tornou-se uma solitária alcóolatra que comprava apetrechos sexuais para usar sozinha enquanto o pai dormia. O fortão que passava de carro conversível era um divorciado que queria aproveitar a vida depois de vinte e cinco anos de casado com a mesma mulher que não quis ter filhos. E a criança que chupava feliz um sorvete de mão dadas com a mãe era apenas uma criança feliz. Sem fingimentos, apenas feliz. Você termina o cigarro primeiro que eu e põe uma música. Bela. Calma. De voz linda e letra precisa. É nossa vida em voz e violão.Você me abraça por trás e meu cigarro no fim cai na sacada do apartamento de baixo. Me convida para dançar e eu também tiro meus tênis úmidos, sentindo o carpete quente e seus lábios ainda frios. Abraçados, ali no meio da sala, você me dá o melhor dos abraços.O que mais se encaixa, o que mais completa o espaço vazio entre mim e outra pessoa.Na janela, uma brisa morna de verão chuvoso entra e balança a fina cortina branca.Eu olho os bogarins, que parecem se mover com a brisa e sorrio. E você tranca a porta...

Um comentário:

Natália A. disse...

Totalmente sinestésico.

Adoray.