Eu não saberia dizer como ocorreu. Em um daqueles sonhos acordados, em que o corpo pesa e a alma levita, eu estava submerso. Em sonhos, em vontades que me recuso a reconhecer quando estou de olhos abertos e de boca calada. Eu gritava. Meus pés estavam dormentes, minha cabeça estava rodando e eu estava só. Só. Só isso.
Nada mais. Nada mais me fazia pensar em chegar ao outro lado. Uma música clássica, de violinos leves e cheiro de grama.
Dentes-de-leão esvoaçavam suas penas pétalas, que formavam poeira sem me doer os olhos. Me faziam enxergar. Era Daniel na cova dos leões. Na cova dos dentes de leões. Mordendo, me faziam rir. Sorrindo, me faziam chorar.
O choro de felicidade era passível de qualquer coisa que me levasse para aquele cesto, onde eu via pequenos dedos e uma voz derretida de bebê.
Mexiam-se com o descompasso de meus pés pesados. Seriam meus pés?
Aproximei-me do pequeno cesto de vime, que chacoalhava como que ninado por um ser invisível a olhos nus. Meus olhos choravam lágrima quente. Minhas mãos, frias, latejavam, pulsavam com o ritmo de minhas batidas cardíacas.
Passei as mãos pelos cabelos espessos, senti minhas unhas grossas e limpas cravando em meu couro cabeludo, como se eu quisesse arrancar de minha caixa craniana o que eu penava em não lembrar.
Estava diante de mim. Eu, diante de mim mesmo.
Eu via aquele sorriso largo, aquele cabelo que ainda não havia nascido. Teria eu me parido? Era eu mesmo a ama daquele que eu neguei amor?
Olhei-me. O bebê me sorriu. Custei a acreditar e pensei que estava sonhando. Estava? Um sorriso de adulto fez o pequeno ser me olhar de olhos arregalados. Meu sinal na testa, hoje amarronzado, era pequena mancha vermelha entre sobrancelhas. O que viria a ele? Teria eu a chance de mudar tudo que passei, senti, vivi? Não. Não. Não mudaria uma vírgula.
Seria crueldade minha daquele que, vinte e cinco anos depois, estaria diante da beleza que é viver, enfrentar, sentir, amar, gozar, chorar? Gozaria de vida, sentiria o amor, enfrentaria seu viver? Sim. Mil vezes sim.
Agachei-me diante do meu eu. Reconheci nos dedos gordos e no olhar atento aquilo que fui outrora. Teria nascido sem pecado, como dizem por aí? Estaria pecando por ter sido parido, por escolher que viria ao mundo? Teriam pecado e tomado uma decisão que caberia somente a mim?
Com a delicadeza de quem tinha amor, enfiei as mãos por debaixo de minhas pequenas axilas em um macacão azul e ergui-me. O peso era grande. Carreguei-me no colo durante muito tempo e sei, por duras penas, como é difícil erguer-se depois da dor.
Abracei-me. Pude sentir o cheiro de gente nova, a sensação de uma vida que me pertencia. Aquela vida que, durante muito tempo, reneguei, xinguei, maltratei. Em um longo abraço, o bebê, sem entender nada, ria. Passei as mãos por sua moleira, com a precaução de quem acaricia um cão enfermo e fiz com que meu dedo indicador descesse desde a testa, passasse pela marca de nascença e percorresse o pequeno nariz. No decorrer do movimento, fechou os olhos. Dormiria? Não, não durma! Eu ficaria sozinho se você dormisse e tenho medo. Tenho medo de você dormir e eu acordar do sonho bom de me cuidar.
Carregue-me pela mão de volta à infância que chegaria para você e jamais me retornaria. Faça com que eu reconcilie-me contigo. Que eu não sofra por ter te abandonado, sido para os outros o pai e para ti o carrasco.
Eu apenas diria: “Tudo ficará bem. Estarei sempre contigo, por mais que você pense que te abandonei em alguns momentos”.