domingo, 13 de julho de 2008

Pare

Guarde tudo para você. Nâo me venha com maniqueísmos baratos ou frases feitas, que não serei seu ventríluquo.
Não me decifre, não tente me conhecer para me entender e achar que, me entendendo, você pode jogar comigo a partida do relacionamento eu-você-e-o-mundo.
Eu posso dar o xeque-mate quando você achar que você é quem manda.
No meu jogo de xadrez, você não é o rei que pode subir a torre e fazer a manobra final.
Eu te surpreendo constantemente e sou capaz de fazer o bispo negro mudar e o permitir que o peão branco dê a volta por cima.
A vida não é simples, tipo preto no branco, como um tabuleiro.
Viva além das tabelas, pise no riscado cinzento, derrube as peças e quebre as regras.
Viver é mais.A vida é apenas eu, você e o imprevisto
22 jan 2008

(Des)encontro

Coloco a chave na fechadura da porta do seu apartamento e ouço o som inconfundível do ato. Abro. Dentro, a meia-luz é interrompida pela minha sombra que se reflete na entrada encarpetada pela lâmpada forte que vem do corredor. Você não olha para trás. Está imóvel, recostado na janela de cortinas brancas transparentes. Fuma um cigarro.Sua calça jeans surrada lhe veste perfeitamente. Seu torso está nu e os seus pés descalços.Eu lhe olho por uns segundos que parecem demorar uma eternidade. Minha testa está franzida e, na boca, tenho um chiclete já sem gosto que insisto em não cuspir.Jogo a mochila mole, vazia, na primeira poltrona que encontro em sua sala e as chaves em cima da mesa de vidro. Você olha para o lado e vejo seu perfil, que contrasta com a iluminação do lado de fora do prédio. Lá fora, de onde acabei de vir, choveu. As pessoas pisavam em poças que, momentos atrás, refletiam luzes de Natal em árvores mortas e carros vivos cheio de pessoas semi-vivendo dentro deles. Antes de entrar no prédio, relembro do cheiro de chuva que me fez respirar fundo, umidificando minhas narinas e entrei no terceiro elevador. Justo aquele que não tinha mais nenhum alguém dentro. Sinto como uma contagem regressiva os andares indo do térreo até o décimo segundo andar. Doze longos segundos até você. É mais do que suficiente.Meu cabelos molhados caem no rosto em cachos assimétricos molhando seu carpete. Não enxergo as gotas formarem círculos no chão, mas sei que caem junto com lágrimas. Aqui de dentro a sensação é outra, completamente oposta da rua iluminada. A visão do andar alto me faz olhar baixo.As pessoas pequenas, buzinando e esperando por um atendimento de socorro da ambulância que percorre a noite quente. Suas sirenes ecoam em meus ouvidos enquanto fecho a porta e a luz do corredor vai formando um feixe até sumir por completo. Não tranco sua porta. Se precisar sair correndo dali em disparate, sinto que não poderei encontrar a chave a tempo; ela que está ali, ao lado do vaso de flores que você ia me enviar hoje pela manhã. O cartão ainda está preso entre os dezoito bogarins e me lembro do significado de tais flores. Bogarins significam amor puro e vivo que existe dentro de uma pessoa. Dou um sorriso tímido e tristonho. Passo as mãos pelos cabelos, digo um "hey" e você repete a mesma palavra de três letras sem olhar para trás.Vou ao banheiro, seco um pouco os cabelos e tiro a camisa. Quando volto para a sala, você já terminou seu cigarro. Aposto minhas calças ainda secas que você jogou a bituca na varanda do apartamento do lado, como sempre fez.Está virado de costas para a janela, mas ainda encostado no parapeito. Parece abatido e tem os olhos vermelhos. Com os braços cruzados e olhando para mim, me pergunta se estou bem, enquanto respondo que sim com as mãos nos bolsos.O silêncio não incomoda, porém parece que não sabemos mais nos comunicar pelo olhar ou pelo toque. Ando até o parapeito e me apóio na janela. Você encosta junto comigo enquanto eu coloco um cigarro na boca e me pede um. Tiro um do maço e entrego na sua mão, mas você olha para mim sorrindo e tira o que está na minha boca. Eu sorrio de volta e cutuco levemente seu abdome com o cotovelo. Encosta seu braço direito em mim e eu suspiro. Seus olhos mirando as vidas que acontecem lá embaixo na rua já não estão mais vermelhos. Meu rosto seco já não escorre lágrimas. Começamos a adivinhar vidas e personagens lá de cima. A mulher que passeava com o cachorro tornou-se uma solitária alcóolatra que comprava apetrechos sexuais para usar sozinha enquanto o pai dormia. O fortão que passava de carro conversível era um divorciado que queria aproveitar a vida depois de vinte e cinco anos de casado com a mesma mulher que não quis ter filhos. E a criança que chupava feliz um sorvete de mão dadas com a mãe era apenas uma criança feliz. Sem fingimentos, apenas feliz. Você termina o cigarro primeiro que eu e põe uma música. Bela. Calma. De voz linda e letra precisa. É nossa vida em voz e violão.Você me abraça por trás e meu cigarro no fim cai na sacada do apartamento de baixo. Me convida para dançar e eu também tiro meus tênis úmidos, sentindo o carpete quente e seus lábios ainda frios. Abraçados, ali no meio da sala, você me dá o melhor dos abraços.O que mais se encaixa, o que mais completa o espaço vazio entre mim e outra pessoa.Na janela, uma brisa morna de verão chuvoso entra e balança a fina cortina branca.Eu olho os bogarins, que parecem se mover com a brisa e sorrio. E você tranca a porta...

sábado, 5 de julho de 2008

Eu não saberia dizer como ocorreu. Em um daqueles sonhos acordados, em que o corpo pesa e a alma levita, eu estava submerso. Em sonhos, em vontades que me recuso a reconhecer quando estou de olhos abertos e de boca calada. Eu gritava. Meus pés estavam dormentes, minha cabeça estava rodando e eu estava só. Só. Só isso.
Nada mais. Nada mais me fazia pensar em chegar ao outro lado. Uma música clássica, de violinos leves e cheiro de grama.
Dentes-de-leão esvoaçavam suas penas pétalas, que formavam poeira sem me doer os olhos. Me faziam enxergar. Era Daniel na cova dos leões. Na cova dos dentes de leões. Mordendo, me faziam rir. Sorrindo, me faziam chorar.
O choro de felicidade era passível de qualquer coisa que me levasse para aquele cesto, onde eu via pequenos dedos e uma voz derretida de bebê.
Mexiam-se com o descompasso de meus pés pesados. Seriam meus pés?
Aproximei-me do pequeno cesto de vime, que chacoalhava como que ninado por um ser invisível a olhos nus. Meus olhos choravam lágrima quente. Minhas mãos, frias, latejavam, pulsavam com o ritmo de minhas batidas cardíacas.
Passei as mãos pelos cabelos espessos, senti minhas unhas grossas e limpas cravando em meu couro cabeludo, como se eu quisesse arrancar de minha caixa craniana o que eu penava em não lembrar.
Estava diante de mim. Eu, diante de mim mesmo.
Eu via aquele sorriso largo, aquele cabelo que ainda não havia nascido. Teria eu me parido? Era eu mesmo a ama daquele que eu neguei amor?
Olhei-me. O bebê me sorriu. Custei a acreditar e pensei que estava sonhando. Estava? Um sorriso de adulto fez o pequeno ser me olhar de olhos arregalados. Meu sinal na testa, hoje amarronzado, era pequena mancha vermelha entre sobrancelhas. O que viria a ele? Teria eu a chance de mudar tudo que passei, senti, vivi? Não. Não. Não mudaria uma vírgula.
Seria crueldade minha daquele que, vinte e cinco anos depois, estaria diante da beleza que é viver, enfrentar, sentir, amar, gozar, chorar? Gozaria de vida, sentiria o amor, enfrentaria seu viver? Sim. Mil vezes sim.
Agachei-me diante do meu eu. Reconheci nos dedos gordos e no olhar atento aquilo que fui outrora. Teria nascido sem pecado, como dizem por aí? Estaria pecando por ter sido parido, por escolher que viria ao mundo? Teriam pecado e tomado uma decisão que caberia somente a mim?
Com a delicadeza de quem tinha amor, enfiei as mãos por debaixo de minhas pequenas axilas em um macacão azul e ergui-me. O peso era grande. Carreguei-me no colo durante muito tempo e sei, por duras penas, como é difícil erguer-se depois da dor.
Abracei-me. Pude sentir o cheiro de gente nova, a sensação de uma vida que me pertencia. Aquela vida que, durante muito tempo, reneguei, xinguei, maltratei. Em um longo abraço, o bebê, sem entender nada, ria. Passei as mãos por sua moleira, com a precaução de quem acaricia um cão enfermo e fiz com que meu dedo indicador descesse desde a testa, passasse pela marca de nascença e percorresse o pequeno nariz. No decorrer do movimento, fechou os olhos. Dormiria? Não, não durma! Eu ficaria sozinho se você dormisse e tenho medo. Tenho medo de você dormir e eu acordar do sonho bom de me cuidar.
Carregue-me pela mão de volta à infância que chegaria para você e jamais me retornaria. Faça com que eu reconcilie-me contigo. Que eu não sofra por ter te abandonado, sido para os outros o pai e para ti o carrasco.
Eu apenas diria: “Tudo ficará bem. Estarei sempre contigo, por mais que você pense que te abandonei em alguns momentos”.